segunda-feira, setembro 22, 2008

LITERATURA BRASILEIRA & POETAS DO RIO DE JANEIRO



CASIMIRO DE ABREU

CASIMIRO DE ABREU – O poeta e boêmio carioca, Casimiro de Abreu (1839-1860) teve uma vida carregada de amarguras, sendo exilado por força do pai em Portugal, a ponto de escrever: “Vivo muito triste e padeço mesmo um pouco do físico; a minha saúde vai-se estragando e eu desconfio que o canastro não dura muito tempo. Adeus; estima-me sempre e lamenta” e também: “eu continuo sempre bom do físico e sempre enfermo do moral”.
Historicamente, depois da fase de instabilidade do Primeiro reinado, com as lutas pela consolidação da Independencia e o clima geral de insatisfação diante do autoritarismo de dom Pedro I, o Brasil entrou numa fase de relativa tranqüilidade política e social com a abdicação do imperador e posterior ascensão de dom Pedro II ao poder, em 1840. A antecipação da maioridade do príncipe, aos 15 anos incompletos, veio pôr fim ao conturbado período período regencial e acabou por definir o regime do país como uma monarquia conservadora. Tomando a si o papel de protetor das artes, o jovem monarca incentiva as aspirações do nacionalismo romântico, que ia ao encontro do desejo de reconstrução e desenvolvimento do pais. É nessa época, a dos primeiros vinte anos do Segundo Reinado, que vive Casimiro de Abreu que pertencia à geração byroniana que representa a segunda geração romântica e que, ao mesmo tempo, representava o homem do Romantismo, esse inadaptado à vida e ao mundo, que sofre do chamado mal do século, ou seja, a crise moral do homem da primeira metade do século XIX. A poesia dessa geração é uma poesia de pessimismo, desalento e evasão, exercida por poetas que geralmente morriam jovens numa época em que as doenças graves, dentre as quais a romântica tísica – a tuberculose de hoje -, não tinham cura assegurada.
Para os românticos, a natureza era a emanação da grandeza divina, a expressão do Criador. Em Casimiro, isso está muito claro nos cânticos religiosos, em que o supremo ser não é o das indagações filosóficas ou abstrações místicas. Filtrado pela visão materna, o Deus do poeta – evidente no poema de que é título – é do aprendizado da infância, força misteriosa que só pode ser confrontada com os aspectos mais temíveis da natureza. Mas que, ainda assim, pode reduzir-se à intimidade da oração.
A idealização romântica do amor, na poesia casimiriana, tem nuanças próprias. De uma parte, a fruição amorosa, sem peias nem resslavas, surge em alguns poemas de conotação barroca, em que o gozo sensual do momento presente prevalece. De outra parte, essa mesma fruição é contida em poemas que exprimem temor e repressão da sexualidade.
Casimiro de Abreu não escapa aos sentimentos ambivalentes do seu tempo, em que a concepção de pureza atribuída ao amor entra em choque com o aspecto carnal do desejo. Também ele não pôde fugir ao temário do Romantismo, nem a uma fonte comum de imagens, nem a recursos estilísticos de sua época. Dentro disso, tem suas preferências e características próprias. Assim, a extrema musicalidade de seus versos chega a limites como o do ritmo imitativo.
Segundo Assis Brasil, a sua poesia é simples, individualista, meio desleixada quanto às normas, por vezes ingênua, adolescentes. Saudade, amor, paisagens, a sua vida domestica, ternura e timidez são seus temas, não se aprofundando neles. É o poeta preferido entre os adolescentes pelo sentimentalismo e musicalidade de seus versos e pelo tom saudoso do passado.
Suas obras: Camões e Jau (drama camoniano, 1856), As primaveras (1869) e Obras (1955).

MEUS OITO ANOS

Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida,
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia,
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias de minha infância
Oh! meu céu de primavera!
Que doce à vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
- Pés descalços, braços nus -.
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores -,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

CANÇÃO DO EXILIO

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra
Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,
As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho
Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes
Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras,
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo
À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas
Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, Cantar o sabiá!

PRIMAVERAS

Primavera! juventud del anno,
Mocidad! primavera della vita.

METASTASIO
I

A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio.
Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.

MINHA MÃE

Da pátria formosa distante e saudoso,
Chorando e gemendo meus cantos de dor,
Eu guardo no peito a imagem querida
Do mais verdadeiro, do mais santo amor:
— Minha Mãe! —

Nas horas caladas das noites d'estio
Sentado sozinho co'a face na mão,
Eu choro e soluço por quem me chamava
— “Oh filho querido do meu coração!” —
— Minha Mãe! —

No berço, pendente dos ramos floridos,
Em que eu pequenino feliz dormitava:
Quem é que esse berço com todo o cuidado
Cantando cantigas alegre embalava?
— Minha Mãe! —

De noite, alta noite, quando eu já dormia
Sonhando esses sonhos dos anjos dos céus,
Quem é que meus lábios dormentes roçava,
Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?
— Minha Mãe! —

Feliz o bom filho que pode contente
Na casa paterna de noite e de dia
Sentir as carícias do anjo de amores,
Da estrela brilhante que a vida nos guia!
— Minha Mãe!—

Por isso eu agora na terra do exílio,
Sentando sozinho co'a face na mão,
Suspiro e soluço por quem me chamava:
— “Oh filho querido do meu coração!” —
— Minha Mãe! —

SAUDADES

Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar;
Quando a lua majestosa
Surgindo linda e formosa,
Como donzela vaidosa
Nas águas se vai mirar!

Nessas horas de silêncio
De tristezas e de amor,
Eu gosto de ouvir ao longe,
Cheio de magoa e de dor,
O sino do campanário
Que fala tão solitário
Com esse som mortuário
Que nos enche de pavor.

Então - Proscrito e sozinho -
Eu solto aos ecos da serra
Suspiros dessa saudade
Que no meu peito se encerra
Esses prantos de amargores
São prantos cheios de dores:
Saudades - Dos meus amores
Saudades - Da minha terra!

A VALSA

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co'as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P'ra outro
Não eu!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
— Eu vi!...

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De arnores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!...

Calado,
Sózinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!

Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!

Quem dera
Que sintas!...
— Não negues
Não mintas...
— Eu vi!

Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!...
— Não negues,
Não mintas...
Eu vi!

CAROLINA
I
ADEUS!
Na estrada que conduz de Lisboa a *** erguia-se há poucos anos
uma casa de bonita aparência, com sua vinha verdejante, seu pomar
odorífero, seu jardim pequeno, mas bonito, suas alamedas, curtas
mas frondosas. O muro da quinta era alto bastante, e contudo os
ramos das faias e dos choupos gigantes debruçavam-se sobre ele,
assombrando com sua folhagem majestosa a estrada, que o mesmo
muro flanqueava para um pequeno espaço.
Ao ver-se essa pequena casa cercada de perfumes, de verdura, de
sombra e de poesia, podia-se sem receio dizer: seus habitantes são
felizes. E eram. Viviam entregues aos prazeres mais doces da vida
doméstica. Acordavam quando a natureza despertava, no meio do
trinar das aves, do sorrir da manhã e do sorrir das flores;
adormeciam sossegados ao som do vento da noite que zunia,
dobrando a coma dos arvoredos.
Era uma bela tarde de maio de 1848. Os raios moribundos do sol no
ocaso pareciam dormir nos bastos olivais que coroavam a crista dos
outeiros; uma viração suave e branda refrescava a atmosfera,
sussurrando por entre as folhas e alterando o espelho tranqüilo do
lago onde o cisne vogava majestoso; o céu trajava o azul mais puro
apenas manchado aqui e além por ligeiras nuvens brancas,
similhantes a vapores, como se fossem os rolos de incenso que os
turíbulos da terra enviavam aos pés do Senhor, impelidos pelas auras
bonançosas. Era na verdade uma tarde de primavera, da primavera,
mocidade do ano, dessa quadra amena e deleitosa, que por toda a
parte entoa o canto grandioso da criação!...
No fim duma das alameda da quinta, debaixo dum lindo
caramanchão, acabavam de assentar-se um rapaz de 20 a 22 anos e
uma menina de 17 ou 18. Tinham os braços entrelaçados e olhavamse
com esses olhares ternos dos amantes.
Que lindo par! Ele, belo com essa beleza que distingue o homem;
ela, bela com essa beleza que Deus dá só às mulheres! Ai! um
sorriso que se desprendesse dos lábios formosos daquela virgem,
mataria de amores um homem! Um olhar meigo e terno que
brilhasse por entre aquelas pestanas aveludadas, venceria o mundo!
- Ora diz-me a verdade, Augusto, sempre partes amanhã? disse a
jovem a seu companheiro, com uma voz suave como teriam os
anjos, se eles falassem.
- Não me acreditas, Carolina? Para que te havia de eu enganar?
Carolina fitou seus olhos negros nos de Augusto, e disse-lhe corando:
- Para quê?!
- Olha, és injusta; um dia to hei-de provar.
- Mas tu não te demoras muito, não é assim?
- Não sei; mas mesmo que me demore muito, um dia hei-de voltar.
- Ah! tu já não me amas! disse ela, e duas lágrimas despregaram-se
de suas pálpebras e vieram cair-lhe no seio.
- Carolina! Carolina! cada vez te amo mais, meu anjo.
E Augusto encostou a cabeça da virgem ao seu peito e beijou-lhe a
fronte.
E os pássaros cantavam seus gorjeios, e a fonte murmurava seus
queixumes, e a brisa dizia seus segredos!...
- Escuta, querida, podes vir todas as tardes sentar-te sobre este
mesmo banco, podes até trazer o meu retrato que eu te dei; e
quando os pássaros cantarem, quando o sol s' esconder, quando a
brisa brincar com as flores, tu ouvirás os meus protestos d'amor.
Sentado à popa do navio que me levar, pisando solo estranho longe
de ti, eu direi à viração do mar, eu direi às brisas da tarde: levai-me
este suspiro a Carolina.
- Sim, sim, murmurava ela, manda-me um suspiro.
- E quando um dia, continuou Augusto, a estas mesmas horas, tu
ouvires uma voz cantar estes versos:
Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
Então, meu anjo, sou eu, é o teu Augusto; então, eu o juro, tu serás
minha à face do mundo e à face de Deus; então nós viveremos.
- Oh! Augusto! Augusto! não partas, não me deixes! e a jovem
banhara-se em pranto e soluçava.
- Oh! eu devo partir, mas creio em Deus, também hei-de voltar.
E Augusto com a voz trêmula e os olhos umedecidos, abraçando a
virgem, disse-lhe:
- Adeus, Carolina!
- Adeus, Augusto! Para sempre?!...
- Não! não!
E seus lábios se encontraram num longo beijo d'amor, no meio de
lágrimas e soluços.
Um grito, agudo e lúgubre como o do mocho, retumbou no espaço!...
- Jesus! exclamou Carolina, cobrindo o rosto com as mãos.
- Não creio em agouros! respondeu Augusto cavalgando o muro.
Um momento depois sentia-se o tropel dum cavalo que partia a toda
a brida para Lisboa...
Quando esse ruído se perdeu ao longe, Carolina juntou as mãos e
disse em voz baixa:
- Adeus, Augusto! adeus!...
Quase ao mesmo tempo, o cavaleiro que parecia fugir nas asas do
vento, murmurava:
- Adeus, Carolina! adeus!
II
CAIU!
No fim da mesma alameda, embaixo do mesmo caramanchão,
sentados sobre o mesmo banco onde seis meses antes dois amantes
se beijavam em prantos, dois amantes hoje beijam-se por entre
sorrisos de prazer.
Ah! mulher! mulher! que tão cedo esqueceste o homem que te votou
o amor mais ardente de sua alma! Esse homem a quem juraste vir
aqui todas as tardes escutar o suspiro saudoso, que ele te havia de
enviar nas asas da viração!...
Ah! mulher! mulher! que tão depressa esqueceste um homem que te
ama, para ouvires os galanteios doutro que te cobiça!... Deixas
adormecida em teu peito a imagem daquele por quem teu coração
novel bateu as primeiras pulsações, ao mesmo tempo tímidas e
suaves, e não te lembras que esse homem virá um dia, implacável
como o destino, terrível como o raio, pedir-te o cumprimento das
juras que lhe fizeste; exigir-te contas do seu amor, que tu
escarneceste; das suas crenças, em que tu cuspiste; da sua alma,
que tu assassinaste!...
Não te lembras que os lábios ardentes doutro homem roçaram as
tuas faces?
Oh! para o futuro, nas horas mortas da noite, sentirás o pungir desse
remorso!
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O dia está quase no seu termo; em breve virá a noite com seu
silêncio, suas estrelas, seus fantasmas, seus mistérios!...
Eles falam; escutamos:
- Olha, Fernando, ontem esperei-te tanto tempo, e tu não vieste!
Estava aqui sentada só, triste! Qualquer ruído que sentia na estrada,
dizia comigo: é Fernando; e enganava-me, não eras tu!
- Não vim ontem, porque não pude; mas vi-te.
- Não vieste e viste-me?!
- Vi-te sim, Carolina, vi-te em sonhos como te vejo todos os dias. E
que outra mulher senão tu, há-de vir abrilhantar os meus sonhos? Às
vezes, vejo-te similhante a um anjo, fugires da terra envolta em
nuvens vaporosas. Ontem vi-te aqui, neste mesmo parque. Tu eras
já minha e estavas tão linda como agora; o céu sorria-se para ti, os
pássaros gorjeavam para tu os ouvires, a brisa brincava com teus
cabelos e tu brincavas com as flores...
- E tu, Fernando?
- Eu?! Corria atrás de ti para te dar um beijo e tu fugias ligeira como
a gazela e depois cansada, com teu seio a arfar, com teus lábios
entreabertos, com tuas tranças soltas, caías desfalecida em meus
braços... e ambos gozávamos gozos, delícias, como só se gozam no
céu... estávamos no paraíso. Ah! que sonho tão lindo, Carolina! Mas
era um sonho. Foi cruel o despertar.
- Não te acredito, disse ela com um sorriso, que queria justamente
dizer o contrário.
- Mas eu não te engano; amo-te como um louco, amo-te como
ninguém nunca amou, porque és tu a mulher que eu havia sonhado
nos meus sonhos da infância, nos meus sonhos da adolescência, nos
meus sonhos dos 18 anos, quando o coração tem necessidade
d'amor, quando os lábios desejam que os beijos duma mulher
venham mitigar a sede que os abrasa.
E Fernando pôs-se de joelhos aos pés de Carolina, cingindo-lhe a
cintura flexível e delicada, com seus braços nervosos.
- E tu, Carolina, também me amas?
- Muito, muito, disse ela, e subjugada pelo olhar ardente de
Fernando, uniu seus lábios corados aos dele, que queimavam...
A noite tinha estendido o seu manto: as estrelas cintilavam no
firmamento, grossas nuvens haviam ocultado a face da lua.
A noite tem seus mistérios!
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No meio daquela mudez aterradora, soou um grito de mulher,
abafado logo por algum beijo. Teria Carolina visto a figura d' Augusto
desenhada no muro fronteiro?...
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Meia hora depois, à claridade da lua que se mostrou de súbito, um
vulto de mulher atravessava apressado a alameda, dirigindo-se para
casa, grave como um fantasma, trêmulo como um condenado!
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As estrelas cintilavam mais frouxas, a lua ocultou-se de novo e um
murmúrio indefinível, similhante a um queixume, parecia subir da
terra ao céu...
Carolina, tinha uma coroa de virgem que lhe circundava a fronte
como uma auréola brilhante; Fernando arrancou essa coroa e calcoua
aos pés!...
O anjo caiu do seu pedestal d' inocência... a rosa purpurina e bela
pendeu na sua haste... o vento da noite levou-lhe as folhas...
III
A VOLTA
Estamos em 1849.
Numa tarde de fevereiro, levado por toda a velocidade de seu bom
cavalo, seguia um cavaleiro a estrada de Lisboa a ***, estrada onde
ficava essa linda quinta com sua casa, no meio de perfumes e de
verdura.
Esse cavaleiro, era Augusto.
Quando ainda de longe ele avistou a casa, seus olhos disseram é ali,
seu coração indeciso, murmurava: aquela?!...
Ai! já não era a mesma quinta bela e verdejante, que ele tinha
deixado na primavera! O inverno havia-a transformado
horrivelmente.
Os ramos das faias e dos choupos gigantes já não se debruçavam
sobre o muro. A natureza estava triste. As árvores não tinham
folhas: apenas erguiam seus ramos despidos que vergavam com o
vento.
Uma tristeza involuntária apoderou-se do mancebo.
Prendeu ao muro o seu cavalo coberto de suor e poeira e pôs-se a
cantar com uma voz trêmula:
Ó querida, estou de volta,
Venho-te um abraço dar;
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
Nenhuma voz respondeu à sua copla apaixonada. Um silêncio
profundo reinava nas alamedas; só os ramos das árvores se
agitavam. Dir-se-ia ser um cemitério.
Augusto teve um pressentimento; sua fronte empalideceu por um
instante, mas continuou repetindo:
Enxuga teus lindos olhos,
Sê minha, que eu sei-te amar.
O mesmo silêncio terrível. Só o eco repetia triste suas últimas
palavras: "sê minha, que eu sei-te amar".
Saltou o muro e alongou a vista impaciente.
Que tristeza! As alamedas estavam desertas, o jardim já não
florescia, o lago já não tinha o seu cisne, a natureza já não sorria!
Foi direito ao caramanchão, ele lá estava no mesmo lugar com o seu
banco de cortiça, mas a fonte que dantes murmurava parecia gemer
agora!
Augusto sentou-se no banco com a cabeça encostada a uma das
mãos e olhou para tudo com uma indizível tristeza.
Ai! os pássaros já não cantavam, nem a brisa brincava travessa!
Então o pranto correu-lhe livre, o seu coração dizia-lhe que chorasse.
- Foi aqui, murmurava ele, foi aqui que me despedi dela, foi aqui que
prometi torná-la a ver. Meu Deus! quantas lágrimas não derramei
quando atravessava o Oceano, que me separava da pátria, onde
ficara a minha alma! E agora, que torno a ver a terra onde nasci,
agora, que devia ver a minha Carolina, não sei por quê, sinto uma
vontade imensa de chorar. Carolina! Carolina! bradou ele, vem ver o
teu Augusto, vem dizer-lhe que sempre o amaste, vem dar ao
desgraçado que chorou os prantos da saudade, o teu beijo de amor:
e os soluços abafaram-lhe a voz no peito.
Mas o mesmo silêncio lúgubre continuou; nem uma voz, nem um
som respondeu aos gemidos do amante.
Ergueu-se pálido e trêmulo e caminhou vagaroso pela alameda que
ia dar ao jardim, cantando sempre com a sua voz comovida aquela
copla, que tão bem exprimia os desejos do seu coração.
Chegou ao jardim e olhou. A casa tinha as portas e as janelas todas
fechadas. Também estava deserta.
- Mudaram-se, disse ele, Carolina já aqui não está!
E volta pensativo para o caramanchão e parou diante da fonte.
- Onde está Carolina? perguntou ele, como se a fonte pudesse
responder-lhe.
- Onde está Carolina? perguntou ele às árvores, e parecia esperar a
resposta.
Mas a fonte continuava a correr e as árvores a agitar os ramos.
- Então adeus, meu caramanchão, minha fonte, meu jardim, adeus!
E Augusto saltou o muro e quis passar por diante da casa onde
estivera a sua amada. Quando aí chegou, parou e pôs-se a olhar
para a janela onde a tinha visto a primeira vez.
- Jesus! Meu Deus! aquele não é o senhor Augusto? dizia uma saloia,
que passava por ali, a seu marido.
- Parece que é, respondeu o saloio.
Ao ouvir o seu nome, Augusto olhou para o lado donde partiram as
vozes e reconheceu-os. Depois de os cumprimentar perguntou logo:
- Diga-me, o senhor Ferraz já aqui não mora?
- Há que tempos! mudaram-se pelo Natal.
- Sabe para onde?
- Isso é que não sei; tanto ele como a senhora estavam muito
tristes, e tinham razão, aqueles desgostos não são para menos.
- Então eles tiveram algum desgosto? perguntou Augusto, que
pressentia a morte de Carolina.
- E muito grande. Sua filha, a senhora D. Carolina, fugiu...
- Carolina fugiu? perguntou Augusto com uma voz que assustou a
pobre mulher.
- Sim senhor, respondeu ela, foi no meado do mês de dezembro.
Custa a creditar, que uma menina tão boa deixasse sua mãe. E daí
pode ser que fosse roubada, quem sabe!
Augusto já nada ouvia; estava louco.
- Oh meu Deus! meu Deus! murmurou ele.
- Jesus! que é isso, senhor Augusto? perguntou a mulher vendo-lhe a
extrema palidez e o chamejar sinistro dos olhos.
- E eu que a amava tanto! continuou ele em voz baixa.
A saloia compreendeu-o e afastou-se murmurando:
- Pobre rapaz! o que lhe fui eu dizer!
Augusto ficou ainda algum tempo imóvel com os olhos turvos e o
peito arquejante, mas depois erguei a fronte de repente e bradou
com uma explosão terrível de dor:
- Ah! mulher, mulher! tu me mataste!
Desprendeu seu cavalo, montou e desapareceu na estrada. Ainda
olhou de longe uma vez para aquela quinta deserta e triste, que lhe
inspirava tantas recordações...
IV
O MUNDO!
O esplêndido sol dum dia de junho de 1852 brilhava com toda a sua
força.
Lisboa-a ufana-curvada graciosa para o Tejo, que lhe beija as
plantas, oferecia alegre as suas torres, seus palácios, suas praças,
suas ruas, aos raios ardentes desse astro vivificador.
Entranhemo-nos por essa Lisboa, labirinto como tantos outros que se
chamam Paris, Londres, etc. Vereis por toda a parte desonra,
infâmia, crime! Vereis a virtude esmagada pelo vício! Vereis a par da
mais deslumbrante opulência, a mais horrível miséria! Vereis o pobre
ajuntar as migalhas dos festins e das orgias do rico! Vereis
desacatada a religião, profanado o templo, insultado o Cristo!
- E vive-se nesse inferno?! perguntareis vós.
- Vive-se sim, porque esse abismo alcatifado de flores, tem uma
atração a que ninguém resiste. Vive-se sim, porque aí pode o
malvado esconder a fronte criminosa no meio da multidão, que se
agita e ruge como o oceano em um dia de cólera. Vive-se sim,
porque a mulher, que o mundo perdeu, pode aí facilmente furtar-se à
vista daqueles, que a conheceram no seu tempo de candura e
d'inocência.
- Vinde.
- Por aqui?!...
- Sim, por aqui; causam-vos nojo estas ruas estreitas, tortuosas e
lamacentas? Também a mim. Reparai como estes prédios denegridos
exalam um fétido insuportável. Tudo respira orgia, vício! Não vedes
essas mulheres, que nos atraem com seus olhares voluptuosos, seus
sorrisos d'amor, seus requebros lascivos? São mulheres perdidas.
Coitadas! Arrojaram-nas nesse abismo de devassidão, e não há mão,
que as salve! Hão-de morrer revolvendo-se nesse lodaçal imundo!
Desçamos esta calçada.
Não vedes além, aquela jovem pálida e linda encostada à sua janela?
Tem seus olhos negros fitos no céu; talvez esteja passando pelo
pensamento toda a sua vida. Quem sabe?
Olhai! também tem sobre a fronte o cunho da prostituição.
Mas reparai bem: não vos parece, assim como a mim, tê-la já
visto?... Esperai! Foi...há-de haver quatro anos...numa linda
quinta...chamava-se...chamava-se...Carolina...
Carolina!! Aquela virgem que passeava pensativa e bela no seu
jardim...inocente como uma pomba?... Oh o mundo!...O mundo!...
E foi um miserável que a perdeu!...
Fernando! Fernando! o que fizeste!...
Onde está teu filho, malvado?!
Meteste-o na roda! Vai, mostro, vai ver se o encontras agora, no
meio dessas crianças condenadas a viver, sem jamais receberem
uma carícia de sua verdadeira mãe, sem que na hora derradeira se
recordem que os beijos maternos lhe roçassem as faces na sua
infância.
E quando um dia, um homem puser sobre teu peito a ponta do seu
punhal, exigindo-te a-bolsa ou a vida,- terás a certeza de que esse
bandido não seja o teu filho?...
Ah! Fernando! Fernando! a virgem, que louca, se confiou na tua
lealdade,- seduziste-a!
A mulher, que com vergonha da sua família, deixou por teus
conselhos a casa paterna, - abandonaste-a!
E a desgraçada, numa noite tempestuosa, vertendo prantos de dor e
arrependimento, bradou desesperada: "Fernando! Fernando! tu m'
enganaste! Augusto, perdão! Meu Deus, valei-me! que hei-de eu
fazer? Oh! a culpa não é minha, levo a consciência tranqüila!"
E lançou-se no vício!...
E não houve um braço que a sustivesse à borda do precipício!...
E as turbas, que vêm e vão, quando passam, chamam-lheprostituta!...
Covardes! não insulteis essa mulher. Foi um homem que a perdeu.
Lembrai-vos que ela já foi virgem; lembrai-vos que essa rosa, hoje
pálida, desbotada, murcha e estendida no solho dum lupanar, já foi
um botão mimoso, que entreabria risonho num jardim florido, e que
o vendaval da vida derrubou.
Não a insulteis! resgatai-a do vício; tirai-lhe o labéu infamante, que
lhe pesa sobre a fronte e Deus vos recompensará.
Não a insulteis, que aquele pobre coração há-de sofrer tormentos
horríveis. Quantas vezes não terá ela chorado lágrimas de sangue,
lembrando-se das carícias de sua mãe, do amor de seu pai, dos seus
dias sossegados e felizes passados no lar doméstico! Quantas vezes
não terá pensado no seu Augusto, que tanto a amava e que talvez
agora a amaldiçoe!...
E essa infeliz, ralada por sofrimentos horríveis, não terá, na última
hora, mão amiga, que lhe venha cerrar as pálpebras?!...
Ah! mundo! mundo! abismo insondável, que tragas tantas vítimas!...
Ah! Sociedade estúpida! que escarneces da desgraça!...
Ah! Justiça! Justiça! palavra irrisória, que nunca punes o criminoso!...
Mas há a de Deus, e essa...é justa!
V
DEUS
Nesse magnífico dia de junho de 1852 em que Carolina na sua janela
olhava para o céu e parecia murmurar uma oração à Virgem, dois
jovens caminhavam conversando pela mesma rua.
- Pois é como te digo, dizia um deles, o amor cá para mim resume-se
no gozo. Para que diabo tem um homem dinheiro, senão para pagar
com ele os seus prazeres? Um homem rico é feliz, tem tudo quanto
quer.
Nada inveja, nem mesmo o sultão, porque o dinheiro também pode
comprar um serralho com cem mil mulheres, que todas juntas
entoem um canto imenso de voluptuosidade e d'amor, cerquem um
homem de carícias e encham o espaço com um concerto mágico de
beijos e suspiros.
Isso é que é vida. Se a não posso ter assim, ao menos nunca me
deixei arrastar por essas torrentes de sentimentalismo estúpido, de
que tantos parvos têm morrido. Cá para mim, o amor é o prazer.
- Tens razão, Fernando, replicou o outro: de que serve dar um
homem o seu amor puro e sincero a uma mulher, se ela depois
escarnece dele?
Tens razão; o amor é o prazer.
- Ora Augusto! disse Fernando soltando uma gargalhada do mais
revoltante cinismo: então tu também caíste na asneira de amar com
muito respeito alguma virgem encapotada? Hein? aposto que ela te
pagou bem!
- Fugiu com outro, a pérfida! disse ele, e seu rosto cobriu-se da
palidez da morte.
- É porque entendia melhor da vida do que tu.
- Oh! Fernando, tu não sabes o que eu tenho sofrido! Era a primeira
mulher que amava, a única, que tenho amado. Era tão linda! parecia
um anjo. Não, não! não creio que aquela mulher me traísse; foi
decerto uma fraqueza d' instante.
- Histórias da vida! Ela aborreceu-se de ti e gostou doutro, eis o
caso. Há quanto tempo foi?
- Há quatro anos.
- Há quatro anos e ainda tu pensas nisso! Se fosse há dois dias tinha
alguma desculpa. É a primeira vez que tal vejo. Pois há mulher
alguma que mereça as lágrimas dum homem? Há tantas!
- Mas eu amava-a!
- Ora amavas! Gostavas dela é que queres dizer. Pois bem, esquecea;
goza agora de vinte ao mesmo tempo e estás vingado
nobremente.
- Sim, sim, quero vingar-me! bradou Augusto, e sobre seus lábios
pairou um sorriso sinistro, diabólico!...
- Até que afinal! Filiei mais um campeão às minhas bandeiras. Dou-te
os parabéns. Para essa vingança, à minha moda, tens quem te
ajude, toca.
E estes dois homens, que deviam saldar entre si uma dívida terrível
de sangue, apertaram as mãos como amigos!
- Sim, sim, quero vingar-me, continuou Augusto, hei-de perder
tantas mulheres quantas as lágrimas que ela me fez verter.
- Bravo! bravo! isso é que se chama uma vingança sublime.
E assim conversando, tinham ambos chegado junto à escada do
prédio onde morava Carolina.
- Oh! Augusto, para principiares a vingar-te, vamos aqui ao 4º andar.
- Não vou.
- Anda, vem! O Moreira disse-me que há aqui uma rapariga muito
linda. Que diabo vais tu fazer agora ao passeio? Anda, vem.
E ambos subiram a escada, bateram ao 4º andar e entraram.
No corredor, sentiram o roçar dum vestido pelas paredes; um vulto
de mulher apareceu a uma porta e fugiu de súbito.
Seguiram essa mulher e viram-na cair sobre um sofá com o rosto
oculto entre as mãos, soluçando como uma criança.
Quando eles se aproximaram, a desgraçada ergueu-se e juntando as
mãos para Augusto disse-lhe:
- Perdão! Perdão! Fernando é que me perdeu, e caiu sem sentidos!
- Carolina! exclamaram os dois mancebos ao mesmo tempo,
recuando um passo.
E só então é que esses dois homens compreenderam o papel, que
deviam representar nesse drama.
- Miserável! Foste tu! bradou Augusto lívido de cólera agarrando
Fernando por um braço.
Este levou a mão ao peito, os olhos injetaram-se-lhe de sangue,
sentiu vergarem-lhe as pernas e ferido por uma apoplexia fulminante
caiu redondamente no chão. Na queda, roçou com a cabeça a orla do
vestido de Carolina.
A justiça de Deus foi terrível!...O algoz expirou aos pés da vítima!
VI
PERDÃO!
Augusto fugiu espavorido daquela casa onde deixava um cadáver; o
cadáver de Fernando, punido pela cólera do Senhor!...
E ele conviveu com esse homem durante tantos anos e chamava-lhe
seu amigo!...
E a mulher que ele amara pediu-lhe perdão, confessando o seu erro
e o seu arrependimento!...
Ela ainda o amava...talvez! e com esta lembrança ele sentia reviver
todo o amor que lhe jurara nos seus dias felizes. Cem vezes quis
voltar para trás e levar nos seus braços Carolina desfalecida, que ele
reanimaria com o seu hálito abrasador, mas a cabeça andava-lhe à
roda, as casas pareciam cair e as pernas tremiam-lhe. Uma febre
ardente devorava-lhe o cérebro.
Uma hora depois, dois médicos contemplavam-no estendido sobre a
cama.
Erguia meio corpo, apoiava-se com os cotovelos, e espraiando os
olhos desvairados, perguntava com uma voz terrível: "Onde está
Carolina?"
Depois...seus punhos cerravam-se, seus dentes rangiam e
murmurando: Fernando! Fernando! caía de novo sobre o travesseiro.
Era o delírio.
À claridade das velas, aquele rosto pálido, que se debatia na cama,
parecia o dum espectro agitando-se sobre um túmulo.
À meia noite cessou-lhe a febre e um sono tranqüilo e longo o
conservou deitado até às 10 da manhã.
Apenas acordou, contra a ordem expressa dos médicos, vestiu-se e
saiu.
Quem o visse na rua diria ser um fantasma. Estava desfigurado como
um cadáver; só seus olhos tinham um brilho imenso.
Dirigia-se apressado para a casa onde se desenrolara a seus olhos o
drama da véspera: queria ver Carolina.
- Quero falar à menina Carolina, disse ele à dona da casa, apenas
entrou.
- O senhor certamente enganou-se com a casa, aqui não há
nenhuma Carolina.
- Pois ela não estava aqui ontem?
- Carolina!...não senhor.
- Se eu estava aqui quando ela desmaiou ontem à tarde!
- Ah! é verdade, mas ela chama-se Amélia.
- Mudou de nome! disse consigo o mancebo, tinha vergonha que a
conhecessem! Depois dirigindo-se à mulher: Não lhe podia falar
agora?
- Ela já cá não está. Saiu ontem mesmo quase à noite, deixando-me
uma carta para entregá-la a uma pessoa que a devia vir aqui
procurar ontem ou hoje. Talvez seja o senhor. Queira ter a bondade
de me dizer o seu nome?
- Augusto ***.
- Justamente. Vou já buscá-la.
- Esperava que eu viesse ontem ou hoje e não quis que eu a visse!
murmurou ele apenas a mulher saíra da sala. Compreendo-te,
Carolina; tu ainda me amas e receavas que eu te repelisse agora que
estás manchada, quando te havia deixado pura. Não, não! não te
repilo, porque o meu coração bate da mesma maneira que batia há
quatro anos; porque para mim sempre serás a mesma Carolina
virgem, inocente, que eu respeitei como irmã; porque terias de mim
o perdão voluntário dessas faltas que o mundo te fez cometer. Oh!
para que me separei de ti? para que fiz aquela viagem?...
E abafou com o lenço as lágrimas que lhe saltaram dos olhos.
- Aqui está a carta, disse a mulher entrando.
Augusto recebeu-a e desceu precipitadamente as escadas. Queria lêla
em casa, porque aí ninguém viria perturbar-lhe a sua dor.
Meia hora depois, sentado a uma mesa, lia ele a carta de Carolina.
" Augusto:
"Perdão! perdão! é de joelhos que to imploro. Não me amaldiçoes;
por piedade, ouve-me primeiro. Bem sei que te rasguei o coração,
porque tu me amavas deveras, mas já tenho expiado de sobra o mal
que te fiz. Para que me deixastes tu, para fazer aquela viagem?
Antes não fosses. Chorava todas as tardes debaixo do caramanchão,
por ti; chorei três meses. Um dia vi Fernando. Um dia... Perdão!
perdão! foi fraqueza; manchei o corpo, mas a alma ficou pura. Não
amava senão a ti. Desde esse dia a tua imagem perseguiu-me
sempre. Tremia diante da minha família, tremia diante de Deus,
tremia diante de tudo! Era culpada! Uma noite, enfim, seduzida por
aquele homem, que prometera desposar-me, reparando a falta,
deixei a casa onde nascera para nunca mais voltar. Passei essa
última tarde com minha mãe, que eu abracei e beijei mil vezes.
Minha pobre mãe! que nunca mais te hás-de sorrir para mim! Meu
pobre pai, que nunca mais me chamarás a tua Carolina!
"Oh! Augusto! Augusto! eu tenho sofrido muito.
"Depois, meu filho foi-me arrancado dos braços, e quando pedi a
Fernando os meus dias felizes, a minha honra, as carícias de minha
mãe e os afagos de meu pai... ele respondeu-me com uma
gargalhada e abandonou-me.
"Para onde havia de ir? Para casa de meus pais? Eles fechariam a
porta à filha indigna que lhes manchara o nome. Não tinha coragem
bastante para suicidar-me...arrojei-me no abismo!...
Mas todas as noites pedia a Deus nas minhas orações, que te
pudesse ver ainda uma vez antes de morrer, a ti, o único que tenho
amado. Deus ouviu-me, Deus puniu Fernando.
"Adeus! parto para longe de ti; nunca mais me verás. Não, nunca
mais, porque é impossível que o coração de um homem possa amar
a mulher que o traiu. Mas ao menos lembra-te que Cristo perdoou a
seus algozes, perdoa-me também. Oh! sim, Augusto, perdão! perdão
para
CAROLINA."
Sim, sim, perdôo-te, exclamou o mancebo deixando cair a carta das
mãos: perdôo-te, porque sinto renascer todo o amor que eu julgava
extinto. Carolina! Carolina! bradou ele, erguendo-se, vem a meus
braços, vem, que eu te dou todo o amor que encerra o coração de
um homem.
Meu Deus! meu Deus! dai-me a minha Carolina, que eu nunca amei
outra mulher no mundo...
VII
A ÚLTIMA HORA
Um mês depois, nos últimos dias de agosto, Carolina gemia
agonizante em Setúbal.
Que coração de mulher resistiria a tantas comoções?
Com a cabeça formosa recostada no travesseiro, firme e resignada,
ouvia ela da boca do sacerdote as doces e consoladoras palavras do
Evangelho.
Sobre uma pequena mesa via-se um crucifixo entre duas velas
acesas, que espalhavam pelo quarto a sua claridade mortuária.
Oh! triste e solene hora do passamento! Como se patenteia então
eloqüente o nada das grandezas humanas!...
- Filha, dizia-lhe o padre, com sua voz suave; lembrai-vos só de
Deus, diante do Qual ides em breve comparecer. Arrependei-vos,
filha, e Ele que é um Deus de bondade e misericórdia há-de perdoar19
vos.
- Deus perdoa-me, padre?
- Perdoa-vos, sim, filha.
- Então morro contente; mas eu também queria levar outro perdão
da terra.
- Dizei, filha.
- É o de meus pais, que eu abandonei, padre; mas eu amava-os
muito.
- Também te devem perdoar, filha, porque Deus manda que se
perdoe.
- Ainda falta outro, padre.
- Dizei, filha.
- É um homem que eu amei muito, padre, e que ainda amo.
- Fizestes-lhe mal, filha?
- Traí-o, padre, disse ela chorando.
- Descansa, filha, ele também te há-de perdoar.
- Meu padre, queria pedir-vos um favor.
- Falai, filha.
- É de enviardes para Lisboa a carta que está sobre aquela mesa; é o
último adeus que eu digo àquele homem.
- Eu enviarei a carta, filha. Mas por que chorais? são ainda
lembranças deste mundo, que vos pungem? Já vos arrependestes
sinceramente de tudo: pois bem; desligai o pensamento de tudo que
é terrestre, mesquinho e pequeno, e pensai em Deus, sublime e
grande.
- Padre, padre, eu vou morrer! repeti-me que Deus me perdoa.
O padre aproximou-se e curvado sobre o leito dizia-lhe:
- Minha filha, Deus é bom, Deus perdoa quando Seus filhos se
arrependem como vós vos arrependestes.
- Minha pobre mãe, adeus! murmurava a agonizante, perdoa a tua
filha, meu pai!
Depois um tremor percorreu-lhe os membros, um soluço saiu de seu
peito e fazendo um último esforço disse: adeus... Au... gus... e a voz
expirou-lhe nos lábios e a cabeça pendeu para o lado, sem um
gemido.
Estava morta.
O padre contemplou-a um instante, mudo e enternecido.
- Morreu! disse ele enxugando uma lágrima, ainda tão jovem! Foi o
mundo que a matou.
EPÍLOGO
Alguns dias depois, Augusto, trêmulo, abria uma carta fechada com
obreia preta, e lia:
" Adeus, Augusto: quando leres esta carta já estarei morta. Consola
meu pai e minha mãe, se os vires. Não amaldiçoes a minha
memória! Morro beijando o teu retrato, que levo comigo ao túmulo.
Adeus! ora por mim!
CAROLINA".
- Sim, sim, disse o mancebo, caindo de joelhos e juntando as mãos,
eu oro por ti. Que Deus te perdoe como eu te perdoei.

FONTE:
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